top of page

                                                       
                                                        Oito baixas e não temos cavalo


CENA I



Dama negra
Saudações, pálida rainha. Como tens passado?

Dama branca
Como passaste pela minha guarda?

Dama negra
Falei-lhes que a guerra havia terminado e eles puseram armas ao solo. Devias manter mais bem informados teus servidores.

Dama branca
E por que atravessaste todo o tabuleiro para anunciar isso ao meu exército? Ele não mais atacava teu povo.

Dama negra
Mas atacou. E como teu marido acaba de assassinar o meu, vim pedir-te para que mantenhas as peças no tabuleiro, dê-me tempo para remontar meu exército e que aceites o prosseguimento da luta.

Dama branca

(Gargalhada) E para quê? Não sabes tu que uma negra não pode controlar nem as peças de um jogo de damas? Que dirá os soldados, os cavaleiros, os bispos, o erguimento de torres! Francamente, queridinha.

Dama negra
E tu, poderias?

Dama branca
Esta é uma partida especial e tu foste a derrotada.

Dama negra
O que te espera agora? Uma cama vigiada por soldados e cavalos brancos, alados, circundando a cena em que aparecerás desvestida do branco, matando o amor de teu rei?

Dama branca
Nesta noite, em que tua derrota deu-me de presente uma súplica, amarei meu esposo feito mulher de um pequeno general.  Estarei ocupada contando estrelas, farei parte da constelação.

Dama negra
As brancas são quem sempre começam.

Dama branca
E começo a pensar que é bom ser branca, ter vestidos brancos, brancos e brancos. Não te queixes tanto. Bem sabes que esta é uma partida especial e que por acaso ganhei. Mas, lembrando-me de teu humilde pedido, digo que um jogo como este não é recomeçado nunca. Ele é único, é meu e amo-o demais. Entra, pensa-te bem-vinda ao castelo dos vencedores. Rei branco, meu esposo.

Rei branco
Como passas? Acomoda-te. É indizível, pois inexistente, o prazer em ter-te em nosso território, nos aposentos de nosso castelo. Vejo que a derrota pesa em teus ombros. Necessitas de abrigo. Quanto tempo tencionas permanecer?

Dama negra
O suficiente para que ponhas teus homens e tua mulher a postos de combate. Nas casas que preferires. Minha exigência é que mantenhas a casa inferior branca à direita do campo de batalha.

Rei branco
Ora, ora, não te exaltes. E não percebes tu que não te encontras em posição de exigir coisa alguma?

Dama branca
Fala-nos bobagens para preencheres com débil voz o pouco tempo que pensamos conceder-te.

Rei branco
Esta partida bem sabes é nossa. Teu povo pode, a qualquer infeliz instante, ser varrido do continente por um cajado branco, sanguinário.

Dama branca
Por que não contas como realmente tens passado? E o pequeno Antônio, teu filho, já entrou para a escola? Parece-me um menino bastante fraco, não sorri.

Dama negra
Os nossos sorrisos tornaram-se ríspidos. Os vossos sustentam a forma da raiva canina.

Rei branco
Minhas estratégias de guerra são por excelência conquistadoras. Teu rei fez o roque grande quando deveria ter executado o pequeno. Morava nele a vontade de sacrificar-se por mim.

Dama branca
A que horas gostarias que realizássemos o baile da vitória? É algo que bem merece a atenção especial de nosso tão estimado rei. É claro que não poderei convidar-te e isso é uma pena. Porém, sei mesmo que não aceitarias, pois não?

Dama negra
Prefiro que o baile seja realizado entre meia-noite e seis da manhã. São as horas que durmo com o bispo. Sim, o vosso. Aquele das estradas negras.

Rei branco
O meu bispo? Na tua cama? Corrompeu-se meu bispo das diagonais e negras estradas? (para dama branca) O que sabes tu a respeito?

Dama branca
Nada, eu não sei nada. Inda ontem pela manhã tive com ele no café. Estava de fato um pouco cansado. Mas não creio que possamos dar ouvidos a uma pobre rainha e negra, a derrotada.

Rei branco
E quanto ao bispo das estradas brancas, tem ele também estado cansado?

Dama branca
Permiti-lhe que fizesse uso de um dos cavalos, ontem à noite. Gostaria de poder acreditar que não tenha eu cometido qualquer mal.

Rei branco
Absolutamente fizeste bem. O pobre imbecil devia bem ter seus confiáveis motivos.

Dama negra (para rei branco)
Bem sabes que se me mover uma casa coloco em xeque todo teu pseudo reinado.

Rei branco
Há sempre as minhas saídas. Para que me preocuparia com contratempos? (gargalhada)

Dama negra
Tenho guardadas boas instruções recebidas de teu bispo que dorme ao lado de tua cama, à esquerda de tua rainha.

Dama branca
Meu rei, chamemos os peões e coloquemos esta rainha negra porta afora de nosso castelo. Já nos aproximamos da hora da ceia.

Dama negra
Há também as torres, encontram-se bem próximas daqui.

Dama branca
Entremos uma vez os três. A ceia está servida no salão.

Rei branco (para dama negra)
Quantos soldados restaram-te?

Dama negra
Dois. Os outros foram esmagados por cavalos, explodidos em torres, vazados por baionetas de peões. Mas não foram ungidos pelos mortos bispos teus. E o que te faz pensar que relatar fatos faz parte de minhas estratégias de guerra?

Rei branco (para dama branca)
Quantas foram as nossas baixas?

Dama branca
Mandarei já que apresentem a guarda. (sai)

Rei branco
A casa branca à esquerda da minha encontra-se livre. Podes, pois, querer ocupá-la. Chá?

Dama negra
Mandarei primeiro que fechem a área. Poderás bem querer ausentar-te.

Rei branco
Estou velho, caminho a passos lentos. Decerto que numa corrida no meu encalço alcançar-me-ias.

Dama negra
Há sempre uma saída que se faz tua. A não ser que nos encontremos na torre de tua dama.

Rei branco
Na torre de minha dama? Enlouqueceste? Poderíamos facilmente ser observados.

Dama negra
Algumas casas nos separarão de possíveis observadores.

Dama branca
Nossas baixas serão já notificadas, meu querido rei. Contentemo-nos nesse ínterim com nossa merecida vitória.

Dama negra
Acabo de promover um peão. Ele chegava antes de finda a nossa batalha.

Rei branco
As promoções não podem ser realizadas em tempo de paz. Bem sabias de nossos acordos. O documento sustenta ainda o selo de vosso reino.

Dama negra
Ordeno, apesar de teus movimentos, que teu roque grande seja imediatamente executado e que, em seguida, ocupe a casa daquela torre. Fá-lo-ei eu mesma se te recusares a me ouvir.

Rei branco (para dama branca)
Manda que preparem meu cavalo e o do bispo de minha dama. Precisamos já ter com o papa.

Dama branca
Meu bispo?

Dama negra
Desta casa não podeis passar. Encontra-se minada por soldados meus.

Rei branco
Ora, ora. E o que pretendes com um magro soldado? A quantas andavam as estratégias de teu rei?

Dama negra
O chá estava muito bom. A ceia não estava prestes a ser anunciada?

Dama branca
Ora, mas que ousadia. Morta de fome, negra rainha viúva? Teu sorriso não mais me parece um tanto ríspido. Agora ele mais que nunca me enoja.

Dama negra
Por minha vez nem vossos dentes rebrilham mais. Eles me parecem podres.

Dama branca
As portas dos fundos aguardam-te abertas. Podes sair por lá, agora!

Dama negra
Mas tu não podes. Elas se encontram por ora bloqueadas. 

Dama branca
Que negócios andas a tratar com a igreja? Onde se encontram tuas estratégias de combate? O que está acontecendo afinal? Teu rei negro já não tomba morto? (para rei branco) Onde anda meu bispo? Ele se encontra n'alguma missão?

Rei branco
Quero a cabeça daquele desgraçado. Agora!

Dama negra
Tanto transtorno já não se faz necessário. Eu mesma já me encarreguei dela e trago-a em bandeja de prata. Pode ser servida em vossas refeições.

Rei branco
O que acontece?

Dama branca
Isto não é possível! Oito baixas! E não temos cavalo!

Dama negra
Sopa de cérebros de bispos brancos! O que diria o africano bispo? Um crânio para o estimado rei! Um crânio para a estimada rainha! (gargalhada)

Dama branca
Megera! (é derrubada por dama branca)

Rei branco
Não podes prosseguir no que fazes sem o teu rei. É contra as regras do jogo. Vai contra nossas normas de guerra.

Dama negra
Um tratado justo entre as nações creio ainda não existir. A casa branca do teu lado esquerdo continua livre, suponho.

Rei branco
Com certeza mais livre do que nunca. Dispensa tua guarda e apresenta-te amanhã de manhã, fora de tuas vestes negras.

Dama negra
Engana-te. Pretendo ter contigo inda hoje. Já!

Rei branco
Não te aproximes! Nem mais um passo!

Dama negra
A partida não mais me parece tão especial.

Rei branco
Ainda me restam as promoções.. um empate, talvez.

Dama negra
Já podes pensar em teu último pedido. Querido rei, encontra-te em xeque. Move-te!

Rei branco
Peões!

Dama negra (para dama branca)
Et vous, alvíssima, gardez!



CENA II



(Dama negra aparece sentada com um cetro preto, tomando do vinho da ceia. Rei e dama brancos encontram-se desfalecidos em lados opostos de um tabuleiro de xadrez. Levanta-se e caminha até o rei, acordando-o sensualmente. Beijam-se. Dançam. Dama branca jaz inconsciente. Dama negra caminha até ela e a acorda sensualmente. Dançam os três. Rei branco senta-se no trono. Dama negra tira-o para dançar e, enganando-o, ocupa de novo o lugar no trono com um cetro preto na mão. Ele pasma. Dama branca choca-se).

Dama negra
Dançai!

Rei branco
Quem és tu?

Dama negra
Uma pobre rainha negra e viúva. E tu, quem pensas ser?

Rei branco
Branco, adulto e macho.

Dama negra (para dama branca)
E tu?

Dama branca
Branca, adulta e rainha. Entrega já a espada de meu marido!

Dama negra
(gargalhada) Marido? Chamas a isso de marido? Nem espada ele tem mais. Como pretendes então manchar teus brancos lençóis?

Dama branca
Naceste em lençóis sujos.

Dama negra
Nasci no chão, no pó. Eu cheiro inda a pó. Tu respiras o pó.

Dama branca
Pois é o teu cheiro que me enoja. Todas as mulheres causam-me náuseas. O cheiro de uma desamparada dói-me mais ainda.

Dama negra

Sentai-vos à mesa e começai a ceia. Sem o vinho. Comei tudo. Lambei os ossos e comei as mãos. A gula não é um pecado. Não a que entra pela boca, desta conhecemos bem o final. Não deixeis nada para mim. Ingeri tudo. Os pratos, é claro, ao final serão lambidos. Um brinde às náuseas, aos estômagos e à cabeça de vossos bispos. Servi-vos!

Dama branca
Querido, não sinto fome numa hora como essa. O que achas que deva fazer?

Rei branco
A mim que cabe a resposta? O que faria uma rica rainha e branca? Onde anda aquele sentido do qual tanto se gabam?

Dama branca (começando a comer)
Eu estava louca ao trocar aqueles dois bispos por uma torre.

Rei
Os bispos são por excelência suicidas em suas diagonais. Teu lance merece vanglória.

Dama branca
De que adiantam as glórias se não consigo parar de comer? Sou gulosa e não sabia. É maravilhoso comer como uma porca.

Rei branco (desesperadamente começa a comer)
Meu Deus!

Dama branca
É bom chafurdar no pó. É bom. Quanto mais eu como menor fica o cérebro. Gula, gula. Como me excito ao senti-la. Não sabia quão bom eram aqueles bispos!



CENA III



Dama branca (levantando-se da mesa da ceia)
Esta partida está acabada. Uma débil fêmea e negra aventurou-se por caminhos de tocaias. És de ora em diante prisioneira no castelo dos brancos vencedores.

Rei branco
Despe-te de teus negros trapos. Ou nós mesmos o faremos.

Dama negra
Por que me quereis desnuda? Que diferença faria isso se mesmo fora de minhas roupas conseguiria ainda ser-me íntima? De mim e do que me pertence elas nada ajudam a esconder. O lance agora é vosso! Mexa-te, cobre teu rei, inútil clareza! Se não fechares com teu corpo esta horizontal o caminho para teu rei será o caminho de minhas vontades. E bem sabes quais são elas. Fecha-a!

Rei branco (para dama branca)
Fica onde estás. O movimento pode ser meu. As regras foram mudadas, ela pode desrespeitá-las. Ela está desorientada, está louca a negra e escura infeliz.

Dama branca
Onde ela mora não deve haver calabouços, cadafalsos.

Rei branco
Eu não sei de mais nada. Como foi que ela entrou aqui?

Dama branca
É a mim que perguntas? Olha para ela. Pensa realmente poder virar o jogo. Esta é a partida derradeira e por acaso e astúcia vencemos. O que há para temermos?

Rei branco
Como andam as torres?

Dama branca
Ora, pelas horizontais e pelas verticais. Eu perdi meu último mensageiro. O que faremos com ela? Volto já.

Dama negra
Ela não te cobriu, adulto e velho macho. Como pôde crer naquela fêmea?

Rei branco
As fêmeas são todas iguais. Confiando-se um pouco em cada uma acaba-se conseguindo um bom grau de estupidez para apostar que são diferentes entre si.

Dama negra
Somos todas soberbas. O que nos difere é o insaciável. Somos quase todas iguais nesse ponto. As outras são mesmo insaciáveis.

Rei branco
Não devias ter vindo. Não há casa para ti aqui. Eu sou um rei, não sou um sultão.

Dama negra
O lance agora é meu. Proponho-te que te acalmes, pois o jogo não é por tempo. Ou melhor, não vos resta muito dele. Tua dama está sem opção de jogo. Deve agora estar com um dos soldados teus.

Rei branco
Aqueles a quem comando têm-me sempre sido fiéis. Aposto cada cara, cada beijo. Meu cetro, inclusive.

Dama negra
Tens um cetro? Para quantos reinos?

Rei branco
Sou rei, branco e macho. Como soam-te minhas palavras?

Dama negra
Não as entendo. Ser incompreendido é uma coisa que jamais verás. Tens o cetro?
(Dançam. Dama branca entra. Arruma o leito para os dois. Despe-os e sai)



CENA IV


Dama branca (para dama negra)
Queijo?

Dama negra
Quero.



CENA V


Dama branca
Como passaste pela última noite?

Dama negra
É bom o teu rei, apesar de branco.

Dama branca
O teu rei negro não te era também bom? Não te bastou?

Dama negra
Todos os reis pretendem parecer bons para os seus. Aquele era realmente meu.

Dama branca
E como, então, deixaste-o sem guarda? Aquele an passant foi imprudente. Devias Ter também deixado meus bispos passarem.

Dama negra
Quantos mais vierem terão o mesmo destino. E agora a baixa será mesmo a tua. E este meu último 'gardez!'

Dama branca
Espera. E as alvíssaras? A minha invasão reside na vontade minha por expansão. Eu quero ofuscar, pungir, cegar. Sou Mussolini, Hitler, branca rainha napoleônica. Tudo do macho branco na fêmea dama! Másculas vontades atochadas em um brilhante espécime mulher. Machos brancos macabros! Eu sou oca, preciso de poder barato para que o solo da terra me atraia. Quanto mais ele me expulsa, mais do seu podre eu necessito. A podridão do planeta me seduz!

Dama negra
Eu queria não te ter dó. Porém, sinto dizer-te que serei implacável. O ar está raro. Vejo desperdício quando ofegas. Calma e vai chamar o teu rei.

Dama branca
Isso é um absurdo! O que queres de dentro do repouso de meu marido? Ele está cansado, precisa de muito mais algumas horas de sono.

Dama negra
O que é que entendes de sono? Chama-me teu rei, quero ter com ele ainda esta manhã.

Dama branca
Mas...

Dama negra
Não ponderes!



CENA VI



(Dama branca vai buscar o rei que caça borboletas)

Dama branca
Quando hás de livrar-te de tua simplória papalvice?

Rei branco
Minha o quê?

Dama branca
Aquela fêmea te espera na corte.

Rei branco
Mas nós já estamos no paço imperial.

Dama branca
Ela o pensa dela. Vai, não te delongues. A espera é o oposto da surpresa. A surpresa o oposto da ansiedade, e a ansiedade o oposto da morte. E ela anseia. (gritando) E eu não suporto o oposto da morte dela! A necessidade de que ela tombe não te torna mais ágil?

Rei branco 
Por que tirar-lhe o viço? Ela poderia ser-nos útil de outra forma que não na forma de morta. Basta a mortualha negra atrás da desditosa preta.

Dama branca
O que estás dizendo, esposo?

Rei branco
Nada, esposa. E alguma vez já me ouviste falando de coisas sensatamente congruentes? Ou não será o que falo coisas congruentemente insensatas?

Dama branca
Oh, sim. O teu sim em nosso acasalamento. E eu me igualo a ti ao contentar-me com o quanto tens para me dar. Submeto minha longevidade à aniquilação de meus desejos, sejam eles quais forem. Os impulsos de minhas vontades geram energia somente para uma ilusão, ou para um sonho. As duas coisas soam-me tão semelhantes. O que sei com certeza é que temos persona não grata em nossa praça forte. O que vamos fazer com ela?



CENA VII



Dama branca
Aceitas um vinho, queridinha?

Dama negra
E por que não, se não for adamado?

Dama branca
Não é nada adocicado. Quantas pedras? Digo, quantas peças?

Dama negra
O suficiente. Meu rei tomba morto. Rei morto, rainha posta!

Dama branca (salta como se estivesse em casa minada)
Querido?

Rei branco
Oito! Oito baixas! E não temos cavalos! Apenas uma torre inda se encontra em pé.

Dama branca
Quantos bispos?

Rei branco
Que bispos?

Dama branca
Quantos lances?

Rei branco
Vinte e um lances já se foram dos vinte e cinco que tínhamos quando da vinda da lutuosa preta.

Dama negra
Vinte e cinco? Errado. Eu não estava sozinha.

Dama branca
Quatro lances. Posições?

Rei branco
Bem, ela encontra-se em... sete... sete bispo de dama. Ela está na tua cara!

Dama branca (para dama negra)
Teu vinho. Quanto mais desfruto de tua companhia mais sinto a necessidade de te punir.

Dama negra
Nossa convivência só é pacífica quando a vós conveniente. Muitas vezes tentastes ocultar vossa face branca, vosso mal. Algo como partir sem remorsos, algo como ter a prazenteira sensação de uma missão longa cumprida. (Para dama branca) Não páras de punir teu marido quando vos deitais porque te deleitas com a punição. O solo não te é fértil agora? Mas, como todos, tens o direito de aguardar por tua hora. Eu, bem sabes, já não estarei aqui então. Não terei minha tez deslustrada por vosso lúgubre funeral. Move-te! Ou tu ou teu rei!

Rei branco (para dama branca)
Eu. O lance é meu. Proponho a essa mulher, a quem o marido morreu, que se submeta à óbvia aparência de nosso poderio militar e, como uma obediente fêmea, deixe o tabuleiro, conscientize-se de sua preocupante posição e parta inda hoje.

Dama branca 
Diz isso a ela.

Dama negra
Nem cavalos tendes mais. Nem esses mais far-vo-iam reverências apesar de a corte encontrar-se agora numa vexaminosa forma e fragância de curral.

Rei branco
Respeita meus cavalos, minha égua, digo, minha dama, e os soldados que são meus.

Dama negra
Não tens mais soldados. Tua infelicidade deveria ter o tamanho de minha auto-afirmação. Há muito descobri que a aceitação daquilo que seja teu mundo jamais virá a mim. Nunca soubeste que direção estavas tomando.

Rei branco
Se escolhi a estrada mais batida e isso tenha-me cegado ao óbvio propósito do mundo, ao mesmo tempo percebo que a estrada menos batida acolhe também pessoas cegas à atração do desconhecido.

Dama negra
Ora, não tentes ser poético num momento como este. Perdeste o caminho, foi simplesmente isso que aconteceu.

Rei branco (para dama branca)
Dancemos, querida.

Dama branca
Cedo-te a negra. Contigo dançarei quando tivermos deixado a corte. O cortejo faz-se mais solene quando em frente ao povo. Mostro-lhes o que penso ser eu e sua reação se reflete em meus pensamentos quando me deito. É como e quando vejo o que fui durante o dia. Moldo-me à noite regada por reações que causei.

Dama negra
O cortejo não só será solene como também fúnebre.

Dama branca
Ora, queridinha, estou a um de dama, e em meu território.

Dama negra
E eu em dama oito de dama. Quem seria a mais ousada?

Dama branca
Eu não te quero tão perto hoje. Falei-te já que não tinha atração por teu cheiro e agora digo que meus olhos não deliram à tua visão. Fica mais distante, por favor. Sou culturalmente despreparada para detectar o óbvio. Perdoa-me, peço-te. Mas os fatos comprovam. Isso é cultural.

Dama negra
Pelo fato de não poderes detectar o óbvio pensas que és bela. Mas talvez não tenha sido por isso que teu rei inda não te tenha deixado. Quero dizer, trais ou és traída?

Dama branca
Eu nunca olharei para a cara de meu rei a dizer: 'Deixarei hoje de ser tua dama porque outros quero.' Mais fácil ficar e tê-los sem que o imbecil tenha consciência de meus prazeres escusos.

Dama negra
'Nunca' é a palavra certa. Conheces o macho intuitivamente. E chamar-te de fêmea intuitiva seria redundância minha. Falo isso por ser eu também fêmea. Mas, em segundos pensamentos, talvez cometa erros em minha generalização.

Dama branca
Eu não consigo te ver. Tua tez não expulsa as cores?

Dama negra
E a tua cegar-me-ia não fosse eu olhar e poder ver-te tão facilmente. Predizível que és, acabo por saber que tua cor inicia o jogo. As brancas são quem sempre começam. Fôssemos nós a maioria faríamos o mesmo? Aqui não é o paraíso. Desnecessário dizer que não cruzarei os braços no conformismo. Conformo-me na luta. É parte no espírito de meu povo. Nisto o paraíso me contém.

Dama branca (esbofeteia negra)

Dama negra
'Credita-me uma promoção diante de teu maneirismo gentil', pediria eu, se ser dama não fizesse parte de mim.

Dama branca
Nem desprezo consigo dar-te. Ignoro-te e por isso não consigo ver-te claramente. Vejo que me apareces e movimenta-te. Sei que me olhas e me percebes. O jeito que me olhas às vezes costuma vidrar-me pasma, boquiaberta e com uma indagação moldando-me o olhar.

Dama negra (passa a mão em frente ao rosto de dama branca a verificar se esta pode de fato não enxergar)

Dama branca (para rei branco)
O que foi que concebeste?

Rei branco
Conceber por onde? Ela mudou as regras do jogo. Ninguém nunca fez isso alguma vez. O máximo a que nos permitimos foi manter as regras. Sempre, sempre mantivemos as regras. E eis que o mundo pára para que eu possa perceber mais alertamente que me encontro nu.

Dama branca
Como foi? Quando foi que isso aconteceu?

Rei branco
A cegueira espera-me perto. Não consigo ver-te. Estou drogado. Estou drogado e nu. (sai correndo)

Dama branca
O vigésimo-sexto lance é teu. Somos eu e tu. Um empate jamais!

Dama negra
Bebeste por muito tempo da mesma droga que teu marido bebeu.

Dama branca
Por mais que eu te olhe não te entendo. Será que estou pensando com os olhos? Primeiro, a partida que fora ganha não foi. Segundo, um empate falso. Terceiro, o caos. 'Tudo acontecerá conforme visto do futuro.' Mas, questionemos menos. Há ampulhetas, sim, no jogo em qual te meteste.

Dama negra
A inspiração às vezes falta. Não sentes nunca tuas idéias desconectadas de uma premissa e de um objetivo? Nunca te sentes em queda livre rumo a um chão que nunca atinges?

Dama branca
De que céu pensas que caio?

Dama negra
Do céu em que te penduravas. O corpo que te habita é o mesmo que não te nota. Essa dor vertiginosa que agora sentes é a dor que teu rei não quer para si.

Dama branca
Estás enganada.

Dama negra
Se nossas vontades fossem mortas nossas vontades não existiriam, e seríamos fúteis. Sinto que é fútil tentar manter batalha com uma branca e acasalada mas solitária dama.

Dama branca
Quanto mais ficamos juntas mais te conheço e de ti não gosto. Quando ficamos juntas sinto-me mal. Se ficarmos separadas não existirás e não me sentirei nem só e nem acompanhada. Mas eu consigo ver aquilo que estraga o no relacionamento.

Dama negra
Achar-se perfeita? Sonhar com príncipes? O que vês quando deliras?

Dama branca
Quando vi dois soldados digladiando desfaleci. Ao vir a mim não via mais cores e um deitava morto. Temi. E bem sabes qual a cor do esposo que sobre a luta viveu.

Dama negra
O jogo é de damas, não xadrez. Move-te!

Dama branca
Quero pensar. É difícil andar e pensar. Mas parada percebo que tua intenção não está inserida nos campos de minha percepção. Que armas usas?

Dama negra
Meu atributo é poder prever tua próxima casa. És nômade. Seguiste o caminho da presa que pensavas meu rei e me vês agora como lazarenta. A ressurreição do inesperado! Toca minhas vestes e meu cheiro subirá teus braços acima.

Dama branca
Muito de estratégia aprendi com meu rei. Meu atributo é ser uma subserviente aprendiz. (pausa) Nossa contiguidade emudece-te?

Dama negra
É fúnebre calar-me por prever tua resposta? Uma funesta indagação de uma preta e perceptiva negra. Como gostarias de um jogo de damas?

Dama branca
Eu não sei jogar de dama. Mas, desta feita, tu inicias.

Dama negra
Já nos encontramos a meio caminho através do jogo. Segundo meus lances, é óbvio. Quebrem-se tuas ampulhetas e 'gardez!' 

Dama branca (salta rapidamente como se estivesse em casa minada)

Dama negra (gargalhada)
Salta rápido e coloca-te onde não possa ver-te.



CENA VIII



Dama branca
O tabuleiro encontra-se arranjado. O corpo de meu rei não tomba morto como o do teu. Rei vivo, rainha viva. 'Gardez!'

Dama negra
Não tens táticas de coisas, e guerras são coisas. Realizo que à noite despes teu corpo para o leito, como se este fosse-te o último. Entre o bocejo no divã, onde te encrudeleces, absorta no tamanho de teu umbigo, e o bocejo fétido ante-sepulcral o que vejo é uma dama púrpura com vestes vermelhas, pretos olhos, lábios lavados em rosa.

Dama branca
E que outras cores poderias notar se o pouco que consegues ver é apenas o máximo que consegues fazer? Francamente, queridinha.

Dama negra
Continues, porém, a elocubrar sobre meu potencial. Não preciso de tanto esforço para efetuar o teu. És previsível, e suas muito facilmente. Perdeste teu lenço de seda verde? Eu estava perguntando-me se este poderia ser teu.

Dama branca
Aceito de bom grado o presente teu. Embora tenha eu isto como um infeto pé de couve, sempre que o tocar lembrar-me-ei de tuas vestes e cheiro.

Dama negra
Inspirei-me em ti para bordá-lo.



CENA IX



Dama branca
Este jogo acabará apenas se uma rainha Vitória aparecer.

Dama negra
Ei-la aqui. E bem sabes o que disse eu aos soldados teus: que a guerra acabara. Mas as minhas armas inda não tocaram o solo. Exemplo? És do tipo que quando te reúnes com tua corte perdes da lembrança o marido. Não é só por uma fêmea negra que um bispo branco se corromperia. Começo a me cansar deste jogo. Ele está ficando monótono.

Dama branca
Se te encontravas cansada não deverias Ter vindo. Contudo, teu cansaço possibilita-me retornar ao rogozijo de minha vadia inércia. Não traio porque assim atrairia a possibilidade de ataque dos outros que não são meus maridos.

Dama negra
A maneira que escolheste para em tal te serpenteares fez-te escorregar ante a olhares libidinosos. Derruba teu rei!

Dama branca
Isso é uma ordem?

Dama negra
Atacas quem não devias atacar.

Dama branca
Mas eu não sabia quem eu estava atacando.

Dama negra
E alguém deve alguma vez atacar alguém?

Dama branca
Todos somos atacados. Atacas-me agora, embora na defensiva, dentro de meu próprio castelo.

Dama negra
De teu casulo? (gargalhada) Todos somos larvas. Nossa vitória, nossas asas! Dancemos.

Rainha branca
Eu quero-me branca a dançar, dançar e dançar. Tu não conheces meus passos...

Rei branco
... e nem aqueles de quem ela é dona.

Dama branca
Tenho um rei a meu dispor e a meus pés, ...

Rei branco
... os quais me guiam conforme os desejos que ela queira realizar.

Dama branca
Uma verdadeira dama usa seu próprio cheiro para atrair incautos no seu encalço.

Rei branco
Escolha um de teus súditos, danada negra, para ensinar-te um ou dois passos rumo a teu caótico caos.

Dama branca
És incapacitada de lindamente dançar como eu, ...

Rei branco
... a vitoriosa rainha e branca anfitriã! (param)

Rainha branca
Recolhamo-nos, meu cacófago rei. As pequenas horas da madrugada crescem. Sinto meu corpo exaurido de vontades que não sejam a premência de um repouso pacífico em sonhos não menos. A negra contentar-se-á com um tapete aos pés de nosso leito real. Rosne a dita e coloca-a para dormir em companhia de nossos cães. Chore a infeliz e deleita-te por tua vitória. Estou cansada. Finda a partida sinto-me preparada para remontar nosso exército. Pela manhã haveremos de colocar em pauta do dia as cobranças por nossas baixas. A coitada não terá tempo nem forças para retaliações. Sinto-me esgotada. Conduze-me ao nosso leito real.



CENA X



(No sonho de dama branca dama negra aparece dançando só. Rei negro aparece)

Dama negra (pára de dançar)

Meu estimado rei. Onde te encontravas quando tua presença era-me inestimável? Por que me abandonaste quando afigura de uma dama negra não se refletia nos pensamentos de um nefando casal branco e vitorioso? Fui informada inda pela manhã de ontem de tua nefasta morte. Não há promoções para reis? Onde estás ou estiveste? O que de fato pode uma negra, rainha e perdedora? A nitidez de meu medo gera-me pânico. Diz-me por favor qual possa ser meu próximo lance: rosnar ou gemer?

Rei negro
Cara rainha, eu de verdade fui morto. Porém, me promoveste através de ti. Postumamente, o processo no qual te encontrar inda me dói. Punge-me ainda o tipo de armas pelo qual optamos. Os pés da igualdade são mancos e somos o órgão doentio. Falo como morto, eu sei. Mas, enfim, não há promoções para os reis. Quem sabe este fato não seja mesmo o empecimento para nossa vitória?

Dama negra
Como podes render-te falante à ironia de tais acontecimentos? O tempo e o espaço não nos pode atar à rendição. Pega teu cetro, vive comigo a intenção da possível vitória.

Rei negro

Estou, pois fui, ferido de morte. A ilusão de poderes ver-me agora advém de teus delírios causados por tua negra viuvez. E bem sabes que essa condição é desprovida de cor a teus lúcidos olhos opacos. Estou morto, negra e dama e rainha. Os desejos não mais moram nos sonhos que não mais possuo.

Dama negra
Isso é confuso. Isso é trágico. Por que voltaste ao jogo do qual foste desarraigado? E quando ainda da tua virilidade nem príncipes me deixaste, estavas por demais preocupado com a belicosidade ágil de tua dama. Usaste-me prematuramente. E não obstante o acontecido, apareces por demais consertado, branco, morto. O que me pedirás ainda? Que deixe pela porta dos fundos o castelo dos virulentos brancos? Que saia cabisbaixa com um cetro branco entre as pernas e traga à luz mulatos machos e fêmeas pardas para o fortalecimento de sei lá que raça? Esse cetro parecer-me-ia uma muleta na qual uma pobre rainha, negra e coxa apoiar-se-ia dolorida e, igualmente a ti, morta. Que fim tem levado meu fulgente Zumbi? Queres-me em opípara ceia celebrada em noite de nossa desdourada reputação? Qual reputação?

Rei negro
As oito baixas foram nossas e as baixas são dos peões cavalarianos. A nobre cavalaria andante nunca foi nossa. Metemo-nos em altas cavalarias.

Dama negra

Pára! Queres morto, enquanto viva, enlouquecer-me? Inda considero-me dama do paço. Meu império inda encontra-se em firmes bases. Não me sinto dama na dança; não me sinto dama no baralho ou em tábula de jogos em oitava casa; não me sinto dama de honra. Tu me vês ou não como primeira dama e tua? Que olhos tens para mim? Dama posta? Tens-me como esposa ou como viúva de um rei?

Rei negro
És soberana que governa um reino sem rei. És a principal, a primeira entre outras. És a peça que pode ser movimentada em todas as direções, por quantas casas desimpedidas houver. És rainha-do-abismo, rainha-do-lago, rainha-dos-prados, és rainha-mãe. A pena é (tirando a máscara preta) que não possues um rei. Sai do castelo, rainha e viúva e preta! Expele de teu ventre outra fêmea vivípara que seja melhor que tu. Parteja menino negro que não quede como teu rei. Estou cansado e farto. Deixa o castelo agora e corteja-me antes de tua ida. Esta será a chave de tua vitória.

(Dama negra sai desesperada. Luzes se apagam)



CENA XI



(Dama branca aparece no leito ao lado do rei)

Dama branca
Uma sequência de fenômenos psíquicos involuntariamente ocorreram-me durante o sono.

(Dama negra traz bandeja com café da manhã)

Dama negra
Queijo?

Dama branca 
Quero.


home

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

bottom of page